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Cultivar o tempo: a fotografiade Haruo Ohara

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Cultivar as imagens


Refletir a questão da do tempo na fotografia de Haruo Ohara solicita, antes de tudo, uma apresentação, em grandes linhas, desse agricultor-fotógrafo. Ohara cultiva o tempo (o instante). Suas imagens fotográficas vêm arar a produção fotográfica brasileira e preparar a terra para o cultivo de outras possibilidades de fotografar, oferecendo um outro olhar sobre o tempo na fotografia.


Filho de uma família de imigrantes japoneses, Haruo Ohara chegou ao Brasil, em 1927, e, acabou, algum tempo mais tarde, em 1933, por se instalar numa comunidade nipônica em Londrina. Foi nesta comunidade que pela primeira vez Ohara entrou em contato com a fotografia. É pelas mãos do fotógrafo José Juliani (Juliani chegou em Londrina em 1933, era um sujeito autodidata, que aprendeu o ofício de fotógrafo numa cidade do interior do Estado de São Paulo, Nova Europa, com um homem de que se sabe apenas que tinha o apelido “alemão” e de quem adquiriu o equipamento necessário para se iniciar nessa profissão.) que Haruo Ohara aprendeu a manusear o aparelho assim como e a revelar os negativos. Sua primeira foto data de 1938 e consiste num retrato de sua esposa Kô, no dia mesmo de seu casamento.


Em 1951, Haruo Ohara funda com outros fotógrafos, o Fotocineclube de Londrina. Neste mesmo ano, associa-se ao Fotocineclube Bandeirante de São Paulo, é também neste mesmo período que ele começa a revelar seu acervo, participando, de alguns salões de fotografia e tendo alguns de seus trabalhos premiados. Em 1956, ele vence o 1o Salão Nacional de Arte Fotográfica da Biblioteca Municipal de Londrina e também é premiado na Exposição Internacional de Fotografia de Paris. Em 1959, suas fotos voltam a ser expostas junto de outros fotocineclubistas, no 2o Salão de Arte Fotográfica da Biblioteca Pública Municipal. Uma transformação em sua produção artística acontece por volta de 1970, quando deixa de fotografar em preto e branco e se dedica às fotografias coloridas. É também quando ele passa a fotografar não apenas o privado, mas também a cidade de Londrina, suas formas e cores, que se atiram à atenção de sua lente fotográfica. Ocorre então nesse momento todo uma ruptura em sua prática fotográfica, notam seus biógrafos Rogério Ivano e Marcos Losnak (2003, p. 46-50).


Neste mesmo ano de 1970, participa da 1ª Coletiva de Arte Fotográfica da Comtour, permitindo, pela primeira e última vez, a comercialização de suas imagens. É apenas em 1998 que o acervo fotográfico de Haruo Ohara vem a público e ganha a primeira exposição individual intitulada Olhares, dentro da programação do Festival Internacional de Londrina, que é exibida na 2ª Bienal Internacional de Fotografia de Curitiba. Já no ano de 2000, cem fotos dele são expostas com destaque na 3a Bienal Internacional de Fotografia de Curitiba. E então, em 2008, o Instituto Moreira Salles realiza a exposição Japão – Mundos flutuantes, em homenagem ao centenário da imigração japonesa no Brasil e consagra um de seus módulos às fotos de Haruo Ohara. Tempo mais tarde, em 2010, por ocasião do centenário de nascimento do fotógrafo, o Instituto Moreira Salles organiza duas exposições: a primeira, em parceria com o Museu Histórico de Londrina intitulada Haruo Ohara – fotografias; e a segunda, Haruo Ohara – forma e abstração, em parceira com o Museu de Arte de Londrina. É em 2016, que acontece, pela primeira vez em sua terra natal, o Japão, uma exposição dedicada às suas fotos. Cultivar o tempo ora como testemunham seus biógrafos, Ohara “jamais foi ou deu a entender que fosse um roceiro com mágico dom da fotografia” (Ivano e Losnak, 2003, p. 120). Seu engajamento nos fotoclubes de Londrina e o Bandeirante em São Paulo, somado a suas leituras gerais e sua assinatura do Boletim do fotoclube Bandeirantes atestam sua curiosidade e sua vontade de conhecer a arte fotográfica, se desvencilhando da ideia de fotógrafo de fim-de-semana. Não por acaso, o que salta aos olhos diante dos cliques de Haruo Ohara é que, antes de disparar o botão da máquina, Ohara “estudava horas a fio a imagem que desejava, com a luz que queria, do modo que pensava, como o enquadramento que imagina. Grande parte de suas fotografias nascia inicialmente em sua cabeça” (Ivano e Losnak, 2003, p. 120). A fotografia de Ohara revela delicadeza e a paciência de seu olhar de deixar as sementes germinarem e as plantas florirem e gerarem seus frutos. Ele sabia esperar e perceber o pulsar do mundo. Esse respeito por buscar ouvir o pulsar das coisas é ético. E suas fotos não apenas retratam a vida cotidiana do campo, seus ciclos bem marcados pelas estações do ano, mas elas mesmas, tem tempo e ritmo. São fotos que deixam o espectador perceber aquilo que faz as coisas falarem. Imagens que procuram olhar o mundo nos olhos e que, ao mesmo tempo, tentam deixar as coisas no olhar.


As fotografias de Ohara indagam o olhar. É como se o fotógrafo estivesse a cada imagem fotográfica conduzindo seu espectador a voltar o olhar e ver o “pequeno detalhe”: tudo aquilo que escapa à ação que precisa de contemplação. Trata-se de um olhar desarmado de extrema presença. Elas parecem lançar aos olhos mais atentos quase sempre a seguinte questão, que, aliás, soa impossível de se fechar completamente: se o mundo estivesse em paz, o que você fotografaria? Com a câmera nas mãos, o fotógrafo vagueia sem direção nem horário, contemplando o panorama do mundo. Suas fotos têm uma coisa em comum: tempo. Restaurar o fluir do tempo dentro da imagem, deixando assim as coisas se configurarem diante de seus olhos.


Não há como não se referir, por exemplo, à essa foto de 1948 intitulado “vento frio (inverno)”, na Chácara Arara em Londrina. Pura impressão em que o vento é capturado com acontecimento e não substância; e, então, a foto é convertida num momento frágil de aparição. O vento torna-se aí um traço que não quer dizer nada, simplesmente, fá-lo existir. Não há nem mesmo uma linha de sentido, pois Haruo Ohara fotografa a coisa em sua imediaticidade, deixando-a num estado de insignificância. Diante dessa imagem é como se respirasse o tempo com todo seu frescor do momento mesmo do fotográfico.


Haruo Ohara deixa as coisas apareçam fotograficamente diante de seus olhos. Assim, são verdadeiras radiações sem sujeito, uma espécie de aventura: algo advém, e ela é da ordem infinitesimal. E daí, capturar seu surgimento neutro, em que tudo parece se organizar antes mesmo de se perder novamente na desordem do mundo. Trata-se muito mais de “incidentes” do que “instantes”. São aparições que surpreendem sem contudo, de nem uma maneira, ser remarcável. Fotografar o mundo dizendo-o em sua imediaticidade não é senão um gesto de extremo pudor, pois não visa através dele, a princípio, nenhum efeito.


Tomando seriamente a proposição de Mauricio Lissovsky em Máquina de esperar (2008) de que a fotografia moderna não se constitui num instante qualquer, mas de um instante que adquiri sua própria duração






Figura 1. Acervo Haruo Ohara IMS – Céu de Inverno (vento frio), 1948. Figure 1. Haruo Ohara Collection IMS – Winter Sky (cold wind), 1948.


(durée) (*Utiliza-se o termo “duração” na acepção bergsoniana que o compreende como “a forma que toma a sucessão dos nossos estados de consciência quando nosso eu se deixa viver, quando se abstém de estabelecer uma separação entre o estado presente e os estados anteriores” (Bergson, 2007, p. 74-75). na espera, esta comunicação visa interrogar a maneira como Ohara trabalha essa matéria – a duração de seus instantes – em suas imagens. Haruo Ohara através de suas imagens fotográficas pretende apreender o instante do mundo se fazendo diante de seus olhos. É como se o fotógrafo buscasse capturar como as coisas aparecem enquanto presença, possibilitando assim um acesso ao sentido originário ou pré-objetivo. Certas fotografias de Haruo Ohara não são simples espelhos do visível, mas, antes de tudo, a expressão de uma experiência originária que advém do encontro do olhar com outra realidade contidas visível. Aliás, como sublinha ainda Lissovsky a naturalização do instantâneo proporcionada pela prática da fotografia moderna possibilitou uma tal assimilação do instante que a experiência da sua duração parece permanecer adormecida ou silenciada.


Aliás, diferentemente da tese de Philippe Dubois (1994, p. 161) de que a fotografia é uma “fatia única e singular de espaço-tempo”, Mauricio Lissovsky subverte essa lógica e prefere ver a fotografia como um ato de congelamento do espaço e não do tempo. E por isso mesmo, o instantâneo fotográfico, para ele, “deixa de ser uma imagem desprovida de tempo (como o fotograma) e passa a ser uma forma particular em que o tempo se manifesta pelo vestígio do seu ausentar-se, pelo seu modo de refluir-se” (2008 p. 60). Até porque, “o instante deixa de ser a interrupção artificial da duração, e passa a ser produzida por ela, gestada em seu interior” (2008, p. 60). Toda sua tese sobre o instante gira em torno da ideia de que, na verdade, o ato fotográfico moderno faz refluir o tempo para fora da imagem, e de que, portanto, a experiência do tempo na fotografia instantânea adquire uma outra concepção de duração que não irrompe no interior da imagem, mas, lá onde ele se faz, se constitui: na espera. Esperar é o gesto mesmo do fotógrafo moderno. Isso impulsiona Lissovsky, por sua vez, a pensar o fotográfico, o material que todo fotógrafo manipula, a partir da noção de “máquina de esperar”, jogando assim com a possibilidade mesmo da fotografia devolver às imagens sua lentidão, sua espessura, no momento mesmo em que ela parece ter alcançado sua máxima aceleração. A fotografia inventa-se “como um dispositivo de retardamento [...] como ‘máquina de esperar’” (Lissovsky, 2003, p. 3).


A fotografia deixa de ser um corte no tempo, a interrupção artificial de sua duração, para ser então algo germinado em seu interior, pois, em toda exposição fotográfica se funda na pose, alguma coisa permanece ainda que minimamente no instante, noutros termos ainda, tem sua duração e faz da fotografia uma “imobilidade viva”, para recuperar uma expressão que ecoa em toda parte A Câmara clara de Roland Barthes (1984, p. 110).


Ohara trabalha com o tempo dos acontecimentos e com a instantaneidade dos eventos. Ele tem que esperar o justo momento e não o momento justo. Momento em que as coisas se revelam. Ele insere-se, assim, nessa tradição moderna que faz da fotografia um gesto que arrasta consigo todo peso do olhar que viu a imagem se fazer no transcorrer do instante. Uma fotografia que tem olhos e sabe fazer ver, visto que “o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” (Didi-Huberman, 2010, p. 29).


Ohara torna visível essa unidade invisível que é a “experiência do instantâneo” (Lissovsky, 2003, p. 12), que funda todo ato fotográfico na duração mesma da espera, mostrando que é sob a superfície da “pequena pele” que origina a película fotográfica, e repousa um emaranha de tempos que se sobrepõem num fluxo contínuo, o que ele dá a ver em seus breves instantes em plena suspensão, é um instante não reencontrado, mas imediatamente encontrado em toda sua pureza.


Ohara sabe esperar, abrindo uma janela para o devir do instante, cuja temporalidade é, quase sempre, aquela mesma do kairós, do acaso, da oportunidade, quando ela não é aí pensada e calculada antes. Porém, uma esperar toda marcada pelo modo passivo – mesmo que nela haja, repita-se, toda uma preparação da cena –, é como se Ohara pusesse a contemplar e esperar surgimento espontaneamente do instante que se mostra, que acontece improvisadamente como o cair de uma folha diante da objetiva, no movimento de decantação do instante ou de sua emergência. Testemunham, nessa direção, os biógrafos: “grande parte de suas fotografias nascia incialmente em sua cabeça. Eram desenhadas mentalmente, depois deslocadas para o exterior no espaço” (Ivano e Losnak, 2003, p. 120).


Enfim, suas imagens eram, inegavelmente, previamente planejada para “executar uma ação determinada, numa determinada hora do dia, também previamente calculada”, notam ainda Rogério Ivano e Marcos Losnak (2003, p. 123). Esse modo de esperar de Ohara talvez se traduza nestas linhas: “durante dias buscava pela luz perfeita, fosse que horário fosse. Fotografava debaixo do sol e chuva, atento às formações tanto do orvalho como da lama” (Ivano e Losnak, 2003, p. 120). Dessa maneira, o instante advém como um flash, com toda sua fragilidade, e é flagrado, pelo olhar de Ohara, no tecido contínuo das aparências.


O gesto de esperar de Ohara rende fotos que não comportam nem palavras nem explicações. Trata-se aí de uma espécie de mergulho no instante que se dissolve na infinitude da duração, no interior mesmo do quadrante fotográfico. Vê-se em cada foto, o acaso, a textura, a forma, o ritmo enquanto expressão mesmo das coisas, um estar lá que se torna imediatamente visível na superfície da chapa sensível. Ohara sensibiliza, no limite, de certa maneira, o espectador em relação a materialidade da imagem visual e o quanto ela pode ser, antes de qualquer significação, uma presença visual.


Grafar com a luz


As imagens fotográficas de Haruo Ohara elencadas mostram que o momento do disparo do clique, da decisão, pode se fazer na eminência do surgimento de uma cena da qual o fotógrafo sentiu, por instinto, que a deveria guardar para si (se lembrar). Mas esse mesmo momento pode ser igualmente o desfecho de uma espera lenta e calma, tal como se o fotógrafo soubesse que isso deveria de fato acontecer. Quase nada acaba de acontecer, um tempo infinitesimal se inscreveu, no entanto, um momento forte se suspendeu. Não trata de um instante notável, um instante singular, pelo contrário, trata-se de um acontecimento neutro, como se o fotógrafo numa relação quase que ingênua com o imediato, deixasse que o instante aparecesse diante de sua objetiva: uma aparição que surpreende sem, entretanto, de nenhuma maneira, ser notável. Está-se, aqui, em plena oposição à concepção de instante decisivo, que, aliás, perde muito de sua pertinência quando se pensa a fotografia plástica.


Fotografar consistiria em se apagar diante da evidência do que a fotografia mostra e, como num haikai, o fotógrafo tem a possibilidade de fazer aparecer uma espécie de objetividade do sentimento: nada procurar dizer, ou melhor, nada querer fazer aparecer, isto é, se apagar diante da evidência do que ela mostra. A fotografia se aproxima da forma do haikai quando ela se torna uma imagem cujo sujeito da enunciação se apaga (momento sem testemunho); uma nominação sem sujeito.


Uma imagem aquém da imagem, em que o mundo já não se mostra mais diante dos olhos por representação. É o visível vindo a si: de repente surge o inesperado que se acena na vertigem da própria existência, sem que seja preciso fazer nada. Ela faz ver o invisível através do visível, eternizado nesse fluxo pulsante da vida que é o instante fotográfico e que faz de cada foto a “expressão do que existe” (Chauí, 2002, p. 171).


A imagem fotográfica torna-se aí uma meditação sobre a origem do mundo ao fazer da superfície da foto uma extensão vazia e silenciosa, que não é outra coisa senão o olhar do fotógrafo procurando sempre sondar a espessura de nossa experiência cotidiana.


Quase se apagando com se se transformasse em mera silhueta, uma outra fotografia de 1949, intitulada “Pôr do Sol – Tomoko e Ciro (filhos) – Chácara Araras em Londrina”, deixa quase de ser figurativa ao transformar os corpos em quase borrões negros.


As características do que é mostrado e que permitem ao espectador identificar o objeto, pouco a pouco, vão se esmaecendo por trás da brancura graciosa que constitui o surgimento da coisa como fenômeno. Esse clarão que irrompe no céu compõe com as hastes da gramínea um movimento harmonioso e sutil, em que ele não mais como um simples produto do acaso do instante, mas potência de uma emoção muito forte. E o dedo que aponta para nada, para essa brancura que brota, sugere o caminho do olhar em direção ao momento de aparição do que não se esperava.


O que procurar aí? A resposta talvez não esteja propriamente no que se teria passado no momento em que a foto foi tirada, mas o acontecimento que ocorreu, e que continua incessantemente a ocorrer sobre a imagem.



Figura 2. Acervo Haruo Ohara IMS. Pôr do Sol – Tomoko e Ciro (filhos), 1949. Figure 2. Collection Haruo Ohara IMS. Sunset – Tomoko and Ciro (children), 1949.



É como se o espectador, a cada vez que a olha, pudesse respirar o mesmo vento, viver o instante capturado, que se renova a cada novo olhar que pousa sobre essa imagem. Haruo Ohara apreende, portanto, uma espécie de eidos do instante: o instante puro (absolutamente fresco) sem nenhuma duração, retenção ou congelamento (Barthes, 2005, p. 101).


A fotografia, nas mãos de certos fotógrafos, não é construção, artifício, mas um grito inarticulado que desperta o olhar para o invisível que já coabita o visível. Dessa perspectiva, a fotografia tem uma certa filiação com o incidente: aquilo que aparece, sobrevém e que é capturado como acontecimento não como substância. É a “revelação de um real surgindo na nudez mesma de uma aparição” (Forest, 2012, p. 118), em que o instante vai se fazendo enquanto instante vivo (não imobilizado) no enquadramento fotográfico. Até mesmo em razão disso, pode-se dizer – para recuperar uma expressão de Walter Benjamin – que o objeto ou modelo fotografado “não vive ao sabor do instante, mas dentro dele”, atingindo, na foto, “uma síntese da expressão” (Benjamin, 2008, p. 96).


Trata-se da fotografia como puro devir-presença, que desfaz a ideia corrente da imagem como reflexo do mundo. A fotografia pode também criar mundos, uma ficção que abre rasuras e fendas ao restituir por meio da imagem algo que não se havia pensado em olhar na sua tenuidade. Desconfiado da concepção corrente de que o real é aquilo que está posto diante dos olhos ou mesmo de sua objetiva, por isso mesmo seu gesto fotográfico parece não se resumir apenas na captura de um instante, mas ambiciona a construção da possibilidade de um real. A imagem nasce de sua relação com o real como se fizesse corpo com o real. Destituída do compromisso com o real da representação, é muito mais uma aliança intensiva com a criação intensiva de modos, práticas e mundo: uma imanência da vida. O fotógrafo é então transformado em poeta: eis o gesto do fotógrafo; eis o gesto do haikai.


Dessa perspectiva, o trabalho fotográfico de Ohara não pode ser simplesmente compreendido como uma vista, uma cena, ou melhor uma apropriação de um pedaço da cena da vida, ele é sobretudo uma elaboração que se constrói passo a passo, permitindo que o visível apareça pouco a pouco. E nesse se fazer visível do visível a percepção cede à impercepção, fazendo ver mais do que se vê, pois como nota Merleau-Ponty o “visível está prenhe de invisibilidade” (1991, p. 24), ou como prefere Marilena Chauí, “Não é uma ausência objetiva [...] é uma ausência que conta no mundo, lacuna que não é vazia, mas ponto de passagem. Poro. Oco” (1981, p. 257). Tudo se passa como se o que é visto o fosse dentro do sujeito, como se aquilo que é invisível fosse uma imagem interior. A intuição do instante, um lampejo de luz da sabedoria que dura apenas um instante. Instante puro, vazio que se aproxima bastante, por sua vez, do estado de despertar, o estado do zen.


Tais imagens fotográficas fazem irromper um outro regime de visibilidade que rompe, rasga com o horizonte do olhar ocidental, já extremamente acostumado aos padrões de visualidade estabelecidos pela perspectiva artificialis e com a tradição mimética (imitação do mundo real). Dessa maneira, a visibilidade de Haruo Ohara desconcerta o olhar ao anunciar a emergência de um outro modo de ver, presente no momento mesmo em que elabora a possibilidade do visível. O que desconcerta o olhar, no entanto, é que ele não se contenta em dizer o que há a ver ali, resta sobre a plasticidade de suas imagens, alguma coisa que não quer se reduzir à sua visualidade ou invisibilidade e reivindica sua presença: o visual. Ele atinge sem que se possa apreendê-lo, envolve o olhar sem que se possa dele reter nenhuma definição precisa.


Nem visível (objeto definível e delimitado) nem invisível, já que toca de perto o olhar atento do espectador, consiste numa visibilidade que, muito embora pertencente ao mundo da representação, é o “fenômeno de algo que não aparece de maneira clara e distinta” (Didi-Huberman, 2013, p. 25), a intensidade da imagem atravessa seus limites, desdobra em outra coisa e atinge o espectador por outros meios, “ele não é de modo algum abstrato, oferecendo-se, ao contrário, como a quase tangibilidade de um choque, de um face a face visual” (Didi-Huberman, 2013, p. 26). Dificilmente nomeável, trata-se muito mais de “um acontecimento do que um objeto” (Didi- -Huberman, 2013, p. 25).


De resto, Haruo Ohara com inusitado manejo consegue transformar a objetiva num olho oriental ao produzir imagens sem nenhuma profundidade, em que o ponto de fuga (ponto de vista) renascentista é eliminado, transformando a imagem numa superfície quase plana da qual o fotógrafo nipônico-londrinense retira a textura e a multidão de detalhes das coisas do mundo.


Todo esse percurso me permite acreditar que Haruo Ohara não trabalha, enfim, com o signo, ele trabalha o signo imagético, explorando as funções poética e metalinguística da fotografia, faz de suas fotos a expressão mesma de uma escritura luminosa (de um grafismo fotográfico), que, levada à suas manifestações extremas, conduz a uma espécie de grau zero da escritura, na medida em que através da poética e da metalinguagem se revela toda a nervura da sintaxe do universo fotográfico e se paralisa o folhear infinito dos signos, que passam a valer por si mesmos. O espectador começa então a ver, apalpar, sentir, ouvir a própria coisa, sem mediação. Tal como um poeta, o fotógrafo empenha-se em apreender um mundo anterior a sua chegada.


Revista Fronteiras – estudos midiáticos 20(3):334-339 setembro/dezembro 2018 Unisinos – doi: 10.4013/fem.2018.203.06

Rodrigo Fontanari2 rodrigo-fontanari@hotmail.com


Referências


BARTHES, R. 1984. A câmara clara. Nota sobre fotografia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 112 p. BARTHES, R. 2005. A Preparação do romance. Vol I – Da vida à obra. São Paulo, Martins Fontes, 429 p. BENJAMIN, W. 2008. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 256 p. BERGSON, H. 2007. Essai sur les données immédiates de la conscience. Paris, PUF, 288 p. CHAUÍ, M. 1981. Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo (Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty). São Paulo, Brasiliense, 280 p. CHAUÍ, M. 2002. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo, Martins Fontes, 2002, 326 p. DIDI-HUBERMAN, G. 2010. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34, 264 p. DIDI-HUBERMAN, G. 2013. Diante da imagem. Questão colocada aos fins de uma história da arte. São Paulo, Editora 34, 360 p. DUBOIS, P. 1994. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, Papirus, 368 p. FOREST, P. 2012. Haïkus, etc; 43 secondes. Nantes, Cecile Defaut, 160 p. IVANO, R.; LOSNAK, M. 2003. Lavrador de imagens: uma biografia de Haruo Ohara. Londrina, S.H. Ohara, 165 p. LISSOVSKY, M. 2003. A máquina de esperar. In: J. GONDAR; M.A. BARRENECHEA (org.), Memória e espaço: trilhas do contemporâneo. Rio de Janeiro, EDITORA, 153 p. LISSOVSKY, M. 2008. A máquina de esperar: origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro, Maud X, 228 p. MERLEAU-PONTY, M. 1991. Visível e invisível. São Paulo, Perspectiva, 260 p.

Submetido: 08/04/2017 Aceito: 22/10/2018




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